Em uma profusão de mensagens e palavras, vários mundos se encontram

por Maria Paula Prates, Aline Regitano
27 Janeiro 2021

 

Agradecemos aos pesquisadores de Iniciação Científica Cauê dos Santos Oliveira e Karina Manzano Corrêa pela colaboração

 

A crise global originada pela COVID-19 tem sido gerenciada pelas agências de saúde como uma pandemia, a ser combatida a partir de modelos epidemiológicos e referenciais biomédicos. Tais modelos parecem limitados para dar conta das intrincadas relações humanas e destas com o mundo não visível, a menos a olho nu e sem qualificação apropriada, a exemplo daquele de micro-organismos como vírus e bactérias ou daquele habitado por espíritos e outras agências extra-humanas. Recentemente, Richard Horton (2020) retomou o conceito de sindemia, cunhado na década de 1990 pelo antropólogo Merril Singer, a fim de argumentar que a COVID-19 atinge a todas e todos, mas não de modo igualitário. Ao considerar estarmos vivendo uma sindemia em vez de uma pandemia, o autor ressalta a importância de se atentar para o imbricamento entre desigualdades socioeconômicas e adoecimentos, que costumam ser caracterizados unicamente como eventos biológicos. Emily Mendenhall (2020), em continuidade à discussão, argumentou que o emprego de sindemia, em vez de pandemia, não necessariamente deve ser aplicado globalmente. Caracterizar o impacto da contaminação por COVID-19 como uma sindemia torna-se relevante por evidenciar que situações de desigualdade social e enfermidades preexistentes, desconsideradas em sua importância por atravessamentos de raça, gênero e classe, assumem uma força ainda mais destrutiva quando doenças como a atualmente provocada pela SARS-CoV-2 se alastram. Ancorar a problemática em realidades sociais específicas é o argumento de Mendenhall, a fim de não esvaziar o potencial político que a ideia de sindemia propicia.

Nesta nota, contamos com a contribuição de duas lideranças mulheres para pensar a pandemia em termos de sindemia entre coletivos indígenas: Watatakalu e Yva, nome Guarani de Talcira Gomes. Damos início, assim, a um processo de produção do conhecimento que busca contribuir com modelos epidemiológicos e de contenção de doenças infecciosas a partir de parâmetros socioculturais indígenas. Nas microcamadas da desigualdade, há diferenças no modo de sentir, viver e ser impactado por crises. Portanto, na carne e nos ossos de indígenas mulheres e homens, a sindemia da COVID-19 impacta de maneiras diferentes. Incumbências, expectativas, economias de cuidado, movimentações entre redes de parentes e centros urbanos, entre outras atividades, variam entre os gêneros. Saúde materno-infantil, categoria dos colegas das ciências da saúde, é um tema que nos interessa bastante.

No informativo Saúde Indígena em um Minuto, publicado em 4 de agosto de 2020, consta que o DSEI Altamira tem incentivado as mulheres Asurini a parirem em suas aldeias, evitando assim que sejam contaminadas nos hospitais de referência da região. As redes de algodão, tecidas entre parentes com o objetivo de acolher crianças que estão por chegar ao mundo dos humanos, evidenciam o entrelaçamento entre técnicas, saberes e modos de cuidar. De um modo geral, a sindemia parece frear o hospitalocentrismo do acontecimento de parto. Parir em casa a fim de evitar o hospital, em tempos de SARS-CoV-2, é um movimento que vem ocorrendo entre muitas mulheres, encontrando o apoio de profissionais de saúde ao redor do globo (iniciativas como essas estão acontecendo em muitos lugares, como no México, por exemplo).

Embora tal iniciativa do DSEI Altamira possa ser vista com otimismo, pois abre caminho para repensar o atendimento de saúde às mulheres e crianças, sabe-se que as situações variam muito de distrito para distrito e, sobretudo, decorrem de orientações e entendimentos ancorados antes em iniciativas pessoais do que em protocolos institucionais de atuação. No referido DSEI, a enfermeira Vanessa Barroso liderou a iniciativa.

Em algumas regiões do Brasil, o que sabemos é que muitas indígenas mulheres têm “aproveitado” a crise COVID-19 para voltar a parir entre parentes. Foi esse o termo utilizado por uma de nossas interlocutoras de pesquisa. Nas linhas que seguem, daremos atenção especial ao que nossas amigas Watatakalu e Talcira nos contam sobre a sindemia. Em nossa próxima nota de pesquisa, a ser publicada em fevereiro, dedicaremos maior atenção aos movimentos que definem que nascimentos ocorram em contextos hospitalares ou nas aldeias, bem como reflexões sobre a atuação de parteiras e rezadores nas respostas indígenas à COVID-19.

Testemunhos e aconselhamentos de Talcira Gomes e Watatakalu Yawalapiti

Ao longo dos meses de 2020, à medida que o novo coronavírus se espalhava pelo mundo, muitas mensagens de áudio foram trocadas entre nós, Watatakalu e Talcira. De uma maneira ou de outra sempre estivemos em contato, mas isso se acentuou quando a COVID-19 começou a fazer parte de um repertório cotidiano. Áudios de Whatsapp pautados pela reciprocidade no interesse de saber se tudo estava bem, dentro do possível, se tornaram frequentes. Atualmente, mensagens de voz intercalam-se por momentos de silêncio e dor pela perda de um parente, ou pelo medo da perda, o que ocorreu recentemente com Watatakalu, e por viagens para tratamento xamânico, como no caso de Talcira. Em novembro do ano passado, quando iniciamos a escrita de um capítulo do livro Childbirth, Persons and Bodies, convidamos Watatakalu e Talcira para conversarem conosco sobre os impactos da atual crise de saúde global na vida de indígenas mulheres, principalmente, em suas comunidades. O convite para uma “entrevista” foi atendido prontamente por ambas, mas ocorreu em dias e circunstâncias distintas.

Watatakalu conversou com Aline no dia 14/09/2020, via plataforma de encontro online, por cerca de quarenta minutos, e compartilhou um pouco do que tem sido sua “luta” nos últimos meses, desde que a COVID-19 chegou ao Xingu. No limite do que uma conversa de vídeo permite, foi possível ouvir, ver, ser afetada por ela, que está vivendo tudo de fora da aldeia e na linha de frente do combate e prevenção da doença na Terra Indígena do Xingu. Watatakalu é filha de mãe Mehinako, de pai Yawalapiti, e  de avós Wuaja e Kamaiurá. Treinada desde criança para ser liderança, cresceu  entre a aldeia e cidades como Brasília (DF) e Canarana (MT), tendo aprendido a fazer política dentro e fora do Xingu. Hoje, além de mãe de duas  crianças, é uma voz ativa no movimento indígena, e coordena o departamento de mulheres da Associação Terra Indígena do Xingu (ATIX).

Talcira, por sua vez, é uma liderança Guarani Mbya que ao longo dos últimos anos tem se firmado como uma importante porta-voz do seu povo. Ao ser sultada por Maria Paula sobre seu interesse em ser entrevistada para a PARI-c, sinalizou o aceite sem indicação de quando isso poderia ocorrer. A comunicação por mensagens de voz, via Whatsapp, funciona bem, mas há limitações. Todas as conversas entre Maria Paula e Talcira tendem a terminar com palavras que indicam um encontro a ser vivido logo ali, presencialmente, num porvir. Nem tudo pode ser conversado por Whatsapp e, ciente disso, Maria Paula perguntou a Talcira sobre a possibilidade de uma “entrevista”. Se Maria Paula falou em entrevista e não em conversa, o motivo foi o de explicitar que gostaria de tornar pública a mensagem. Dias se passaram até que, em um amanhecer, Talcira gravou áudios contando sobre a sindemia do novo coronavírus e como ela estava sendo vivida no Teko’a Pará Rõke.

Perguntamos a ambas sobre de que modo indígenas mulheres têm sido afetadas pela sindemia da COVID-19 e como a enfrentam, além de suas principais preocupações e perspectivas para um horizonte próximo. Com vocês, leitoras e leitores, nas linhas que seguem e concluem esta nota, Talcira e Watatakalu.

Mensagem de Talcira Gomes para Maria Paula

 

 

 

                   

                   

 

 

 

A transcrição da mensagem oral de Talcira Gomes segue a grafia comumente empregada por professores guarani-mbyá da região meridional do Brasil.

Nhande ka’aruju pave’i.

Boa tarde a todos os meus parentes.

A quem não é meu parente, também, boa tarde a vocês de todos os estados, todos os países.

Meu nome é Talcira Gomes, eu sou Guarani. Sou uma indígena, cacique, mulher Guarani e única Guarani cacique entre as mulheres aqui do Rio Grande do Sul. Eu moro na aldeia Pará Rõke, que significa “portal do mar”. Moro há três nessa aldeia, que fica em um município do Rio Grande do Sul, perto da fronteira do Uruguai.

Eu tenho uma coisa para falar: é sobre a pandemia, sobre a doença que está matando muitas pessoas. Aqui, a gente está preparado. A gente mora entre 80 pessoas…. Começou, se não me engano, no mês de março, essa doença que vocês chamam de coronavírus. Eu fico muito preocupada e muito assustada também. Mesmo que a gente more na aldeia, fique no isolamento e a gente não saia de casa, assim mesmo. A gente está fazendo muitas coisas na aldeia. A gente começou a fazer a Casa de Reza e, graças a Deus, agora está tudo pronto. Depois a gente vai fazer uma plantação também. A gente se preocupa um pouco também. Me preocupa também o mundo. O mundo está pedindo socorro por toda maldade que está acontecendo. Eu fico bem preocupada com isso. Assim mesmo a gente reza bastante. A gente já tem a casa de reza, onde a gente vai três vezes por semana para rezar, pedindo para Deus que termine essas coisas que estão acontecendo. Eu fico assustada porque muitas pessoas estão morrendo. Fico aqui orientando as crianças, orientando os meus mais velhos que estão aqui. Assim mesmo, a gente tem nossa cura, a gente está preservando nossa cura. Qualquer coisa, se a gente fica com febre, já tem remédio, remédio tradicional que a gente ainda usa. A gente mantém ainda. A gente mantém a nossa fala indígena também. Eu tenho muitos amigos e amigas que moram em outros países. Eu fico rezando sempre, é tudo isso…. Tem preocupação.

Apesar de não termos essa doença, a gente se preocupa pelo povo, pelo mundo, porque a gente tem coração puro. A gente não tem ódio no coração, não temos raiva no coração. A gente só tem amor no coração e isso afeta muito as pessoas daqui, os Guarani. No ano passado (2019), a gente já fez uma cura Guarani, uma cura xamânica Guarani, onde não vem só Guarani, vem aquele que acredita na nossa religião. E então a gente cura, faz cura com o coração, faz cura com chá, faz cura com petynguá, faz cura com a espiritualidade. Tudo isso a gente fez no ano passado.

Eu estou aqui rezando, preocupada. Assim mesmo, a gente faz remédio, planta remédio. A gente se preocupa com os outros povos, com outros indígenas que não sabem fazer remédio e estão morrendo também, porque eu acho que eles não usam remédio tradicional. A gente sempre traz do mato, a gente faz remédio, a gente toma, a gente faz chá e a gente cura com isso. Aqui na aldeia mesmo, a gente nunca tem essas coisas. A gente não tem nem gripe normal, não tem nada. A gente está feliz aqui.

Assim mesmo a gente se dói também no coração, pensando nas outras pessoas. Eu fico preocupada demais com isso. Eu estou aqui, mas eu estou aqui na minha roça, olhando melancia e olhando batata, e assim a gente fica fortalecido. Porque tem que ter fé em Deus, tem que ter fé em Deus! Deus sabe o que faz e o que não vai fazer por nós também. Isso é uma preocupação muito grande que a gente tem. A gente mora perto da fronteira, mas a gente está feliz igual.

Eu falo um pouco sobre essas coisas porque eu não sei o que vai acontecer no mundo daqui para frente. A gente já sabe as coisas que vão acontecer, o que o próprio Deus mesmo vai fazer acontecer isso na terra Dele. Isso, muitas pessoas não sabem. O juruá (não indígena) não sabe o que está acontecendo. Isso nos deixa muito preocupados. São muitas coisas.

Assim mesmo, a gente está feliz. Na aldeia estamos felizes. A gente está fazendo roça, fazendo artesanato e assim a gente esquece um pouco. Tudo isso me afeta muito às vezes. Essa é a minha preocupação que eu falo, das coisas, com essa pandemia que está acontecendo. A gente fica muito preocupado, mas assim mesmo a gente reza para o povo e para o mundo porque nós temos o coração puro.

E é isso. Qualquer coisa eu falo mais, conto mais as coisas. Eu conto mais sobre a pandemia e o que é que a gente faz para se proteger, porque os Guarani têm muitas coisas para se proteger das coisas ruins que estão chegando. Não é só da doença. Tudo isso. A gente tem sabedoria porque somos Guarani, a gente fala só em Guarani na aldeia. A gente fala português também, mas a gente fala meio obrigado, meio à força, mas, assim mesmo a gente está feliz. A gente sempre está feliz. Muitas coisas estão acontecendo no mundo e a gente fica feliz. Não vem nada de ruim para a gente. Isso me alegra muito. Quando eu não me alegro, eu estou pensando nos outros que estão morrendo. Minha preocupação é isso. Podia todo mundo, todo o povo, pensar como os Guarani pensam. Sempre tem muita diferença entre os brancos e os Guarani.

Ha’eveté, ha’eveté che, amiga Maria Paula, que pediu para que eu falasse um pouco e qualquer coisa eu falo mais. Ha’eveté! Aguyjevete!

Excertos da entrevista da Aline com a Watatakalu

É uma coisa que os parentes já sabiam que poderia acontecer porque no passado já aconteceu algo parecido, mas antigamente a gente não sabia, nossos antepassados não sabiam, não conheciam, mas nós sabíamos que poderia acontecer isso. Tem chegado de uma forma muito trágica nas comunidades, nos povos, perdemos muitas pessoas da nossa família, e isso chega como uma coisa que vem destruir mesmo culturalmente. O que é isso? Ele leva nossos mais velhos. Nossos mais velhos são aqueles que nos ensinam, são os nossos livros, nossas bibliotecas inteiras, são a nossa língua, os costumes, e eu vi acontecer em cada povo diferente. No Alto Xingu as primeiras etnias afetadas foram Kalapalo, Matipu e Nafukwá. Kalapalo tem várias aldeias. Na aldeia principal não se perdeu ninguém, e por quê? Porque eles usaram muitas plantas medicinais. No Nafukwá se perdeu uma pessoa, nas aldeias pequenas Kalapalo, perderam três pessoas. Mas isso é o que o distanciamento da cultura também teve a ver.

Nessas aldeias, os que moram perto da cidade é o que tem distanciado da nossa cultura. Então eu vi a doença agir de forma diferente em cada lugar. Onde a cultura ainda prevalece, as comunidades conseguiram usar a medicina não indígena junto com a medicina tradicional, e isso eu vi dando resultado. Matipu não teve nenhuma morte. Foi incrível, eles falam que foi muita erva. Foi muita planta medicinal junto com medicamento não indígena também. No meu povo foi devastador, levou meu cacique, levou a minha tia-avó, uma das mais velhas, minha prima, meu tio. Para você ter uma ideia, os mais velhos hoje, do nosso povo, são as pessoas como se fossem adolescentes ainda em formação, assim rebeldes, são os nossos mais velhos hoje. Porque pela rebeldia deles, por causa da imprudência deles nós perdemos os nossos mais velhos. Não que a vida dessas pessoas mais velhas que ficaram não seja importante. Toda vida é importante. Mas os que se foram não mereciam ter ido, porque eles fizeram de tudo para que essa doença não chegasse na aldeia, são os que imploraram para a doença não chegar na aldeia, e são os que tinham bagagem. Tinham tudo para ensinar para gente. A questão da língua, dos rituais, das coisas das artes. Nossos professores, nossas professoras são os que foram embora.

E hoje vejo meu povo, os mais velhos do meu povo somos nós. Temos quarenta anos. Minhas primas e primos. Meu primo mais velho tem 42 anos. Somos os anciões do nosso povo, é muito engraçado isso, e assim, o universo fez como se nos tornássemos anciões do nosso povo agora. E essa responsabilidade caiu nas nossas costas assim com tudo, puu, e isso me traz muito medo, porque a gente, nossos pais, nossos mais velhos, eles conquistaram esse espaço deles, eles tiveram nomes porque fizeram algo. Muitos dos jovens hoje que receberam essa responsabilidade assim ó vuck, colocaram tudo, isso não é herança, sabe, você ter espaço na nossa sociedade não chega através de herança, você tem que fazer, você tem que conquistar aquele espaço e isso me assusta muito, porque a gente vive num mundo muito machista, nossa sociedade é muito machista. Os nossos pais, nossos caciques que se foram, eles nos deram muita força para termos espaço hoje para falar no meio de tomada de decisões, a gente teve apoio deles, mas os de hoje, eles não pensam assim. E talvez a gente tenha que enfrentar tudo isso também.

Eu já passei por perda de pai. Vi na minha própria família algumas pessoas se perderem. E eu posso ver isso de novo não só dentro de uma família, eu posso ver isso dentro de uma sociedade inteira, de um povo. E assim foi na minha aldeia, uma etnia inteira foi contaminada, uma aldeia inteira, acho que eu sou uma das pouquíssimas Yawalapiti a não ser contaminada. Então eu vi, vivi, senti a dor da perda. Vi meus parentes morrerem, meus parentes sofrerem, e não poder fazer nada. Isso foi um negócio muito louco. É como se eu já tivesse vivido isso. Depois eu conto. No povo Kamaiurá também chegou com tudo. Entre o povo Kamaiurá, a doença também está bem forte nesse momento. No meu povo já baixou, as pessoas já estão se recuperando. Isto, onde a cultura tá bem abalada, eu vi essa doença desestruturar uma comunidade inteira. Então para mim cada povo reagiu diferente um do outro. No Kuikuro não tivemos nenhuma perda. Eles usaram muita planta, ninguém foi para cidade se internar. Eles ficaram lá, eles criaram até um hospitalzinho, foi incrível, foi lindo assim, o trabalho que eles fizeram. O povo Wauja também criou um postinho de atendimento assim.

O governo criou esse plano, mas não teve dinheiro, mas as comunidades conseguiram executar com o dinheiro dos parceiros antigos. Então montaram toda essa estrutura. Mas teve gente que não aceitou esse apoio, e o meu povo não aceitou esse apoio. O povo Kamaiurá não aceitou. Não aceitou essa preparação. Porque toda a preparação foi feita antes da doença entrar. E agora está no Baixo Xingu essa doença, age de uma forma diferente. A contaminação é muito lenta, porque a cultura do Baixo Xingu é de aldeias de famílias pequenas. Cada família tem uma aldeia, então cada aldeia tem uma, duas, três casas, então não contaminou como no Alto Xingu. No Alto Xingu, se contamina cinquenta pessoas em um dia, de uma vez. De repente já contaminou trezentas pessoas. Não está sendo assim no Baixo Xingu. As pessoas devem perguntar, e as mulheres, como fizeram com tudo isso? No começo as mulheres se organizaram bem para tentar evitar a entrada da doença, mas a gente teve que lutar contra o patriarcado, em todo lugar, porque eu vi mulheres sendo usadas como desculpa para ir para cidade, por exemplo. “Minha mulher precisa de sabão”, “minha mulher precisa disso”. Criamos uma campanha para levar esses materiais que eles diziam que as mulheres precisavam, e cada vez que a gente entregava esses materiais que foram citados, aparecia outra desculpa. “Preciso levar minha esposa porque a bolsa família dela foi bloqueada”.

Muitas pessoas perderam a vida, se contaminaram por causa de uma bolsa família ou um auxílio emergencial. Tem gente que morreu por causa de seiscentos reais. Então, são coisas que eu vi. Foi usado como arma contra a gente, jogaram iscas e nossos parentes foram. E eu vi mulheres sendo usadas para serem isca, porque a maioria vem no nome das mulheres. E agora a gente só tem que reconstruir tudo isso. Tudo que ficou para trás.

 

O capítulo das autoras mencionado nesta nota está no livro Childbirth, Persons and Bodies: interweaving Culture and Biomedicine, a ser publicado no primeiro semestre de 2021 pela editora Springer Nature.

 

Como citar: Prates, Maria Paula e Regitano, Aline. 2021. Em uma profusão de mensagens e palavras, vários mundos se encontram. Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19. Disponível em www.pari-c.org. Acesso em dd/mm/aaaa.