Notas sobre a chegada da pandemia de COVID-19 em São Gabriel da Cachoeira (AM)

por Dulce Meire Mendes Morais
27 Janeiro 2021

 

Esta nota de pesquisa toma como referência um artigo acadêmico de autoria coletiva que foi submetido à revista Global Public Health

Na primeira semana de março de 2020, a jornalista do Instituto Socioambiental (ISA) convidou-me para participar de uma oficina sobre comunicação social em São Gabriel da Cachoeira, cidade em que eu estava realizando trabalho de campo para desenvolvimento de minha dissertação de mestrado em Saúde Pública na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP). Essa oficina receberia algumas pessoas de grandes centros urbanos do Sudeste do Brasil. Dias depois, a jornalista me consultou sobre a possibilidade de adiamento da oficina, já que os casos de COVID-19 estavam aumentando em São Paulo e no Rio de Janeiro.

São Gabriel da Cachoeira está localizado na região conhecida como Cabeça do Cachorro, que faz divisa com a Colômbia e a Venezuela, no noroeste amazônico. Distante 852 quilômetros da capital amazonense, Manaus, o município apresenta a terceira maior extensão territorial do Brasil, sendo aproximadamente do tamanho da Inglaterra. Sua população é formada majoritariamente por indígenas, apresentando grande diversidade étnica com mais de vinte povos indígenas (Pira-tapuya, Tukano, Tuyuka, Baniwa, Baré, Dâw etc.) e quatro famílias linguísticas (Aruak, Tukano Oriental, Naduhup e Yanomami), tendo como línguas co-oficiais do munícipio: o Nheengatu, o Tukano e o Baniwa, além do Português. Segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, dos 37.896 habitantes do município, 29.017 se autodeclararam indígenas, contabilizando 76,57% da população total, tornando-o o município de maior população indígena do país.

Considerando o primeiro caso confirmado do novo coronavírus no estado do Amazonas – aproximadamente uma semana após minha conversa com a jornalista –, a Prefeitura de São Gabriel promulgou o Decreto n. 003, no dia 18 de março, que apresenta situação de emergência na saúde pública do município e implementa o Comitê de Prevenção e Enfrentamento ao Novo Coronavírus (COVID-19). Antes disso, o estado do Amazonas já havia decretado emergência na saúde pública no estado (Decreto Estadual n. 42.061 de 16 de março de 2020). Desta forma, as atividades de atendimento ao público e os eventos que produzem aglomerações foram suspensos pelo período de trinta dias. Também foram suspensas as operações de trânsito das embarcações que faziam o trajeto de ida e volta entre Manaus e São Gabriel, sendo permitida apenas a circulação de embarcações com insumos, cargas e combustíveis.

Desde então, como medidas iniciais de combate à ameaça do novo coronavírus, outros decretos foram promulgados e muitas reuniões foram realizadas na cidade. Com o intuito de apresentar as primeiras formulações do Plano de Contingência Municipal, no dia 20 de março, os funcionários da Secretaria Municipal de Saúde de São Gabriel da Cachoeira (SEMSA) se reuniram no ginásio de esportes da cidade.

Além disso, no dia 19 de março, as instituições locais rapidamente se articularam para realizar uma reunião do Fórum Interinstitucional de Políticas Públicas, criado em 2011 para articular propostas em relação às dificuldades que afetam a região do Rio Negro. De acordo com a ata da reunião, estavam presentes a diretoria executiva do Fórum, membros dos departamentos da FOIRN, representantes do DSEI-ARN, assim como do Instituto Federal do Amazonas (IFAM), do ISA, do Hospital de Guarnição (HGU), da SEMSA e da Diocese, além dos líderes comunitários indígenas.

Neste evento, Marivelton – diretor-presidente da FOIRN e liderança Baré do médio Rio Negro – colocou como pauta a  barragem do acesso de pessoas não indígenas nas comunidades, para que o vírus não atingisse a população nas terras indígenas. Essa pauta também se mostrou relevante em reunião posterior, no dia 27 de março, em que os profissionais do Distrito Sanitário Especial Indígena Alto Rio Negro (DSEI-ARN) se reuniram na sede do ISA para discutirem as formas de prevenção e de cuidado nas comunidades indígenas. Essa preocupação se intensifica quando se leva em conta a logística de atendimento às pessoas com suspeita da doença, devido às dificuldades de locomoção entre as comunidades e a cidade. Destarte, o médico presente na segunda reunião salientou a importância da diferenciação entre os sintomas gripais, de resfriados e do novo coronavírus. Segundo o médico, o aconselhável era transferir com o helicóptero do DSEI, da comunidade para a cidade, apenas pacientes com sintomas da COVID-19, porque seria necessário todo um cuidado na utilização de máscaras, toucas, luvas, esterilização do helicóptero e, eventualmente, de barcos, antes, durante e após o deslocamento da pessoa com suspeita de infecção por SARS-CoV-2.

A representante da Associação dos Professores Indígenas do Alto Rio Negro (APIARN) ressaltou, na reunião do Fórum, a questão da segurança pública e do controle de bebidas alcoólicas. Além disso, uma das medidas complementares ao lockdown no município foi a proibição de bebidas alcoólicas por um período de oito dias no mês de maio, como consta no Decreto n. 021 de 11 de maio. Também foi promulgado o Decreto n. 019, de 5 de maio de 2020, que versa sobre a suspensão por quinze dias do transporte público e de táxi-lotação em São Gabriel da Cachoeira.

Por fim, foram anunciadas em ambas as reuniões preocupações em relação à tríplice fronteira, assim como a falta de estrutura tanto do DSEI-ARN quanto do HGU para realizarem o atendimento de pessoas com o vírus. O HGU é o único hospital da cidade e sua administração é realizada pelo estado do Amazonas em conjunto com o Exército Brasileiro (sede do Comando de Fronteira Rio Negro e 5o Batalhão de Infantaria de Selva). Em situações de normalidade sanitária, seu funcionamento já apresentava necessidades para a realização de cirurgias e atendimento a quadros graves de saúde. No início da pandemia, o hospital contava com apenas sete respiradores e nenhum leito de Unidade de Terapia Intensiva, o que ocasionou o colapso do hospital logo nos primeiros dias de pandemia. O HGU fazia o encaminhamento dos casos graves de COVID-19 para Manaus (por meio de transporte aéreo, com o auxílio logístico da SEMSA), cidade que já estava em estado de calamidade pública.

A sensação das pessoas era de grande preocupação. Nos televisores dos bares e restaurantes que eu conseguia ouvir das ruas da cidade, telejornais noticiavam a chegada do vírus no Brasil e, posteriormente, o desastre que ele vinha causando em Manaus. Encontrei amigas indígenas que me relataram pesadelos, medos, incertezas e sobre parentes que estavam tentando retornar de Manaus e não conseguiam devido ao fechamento da cidade. As ruas ficaram praticamente vazias uma semana após o Decreto de 18 de março, que instaurou situação de emergência no município. Muitas famílias se isolaram em sítios, outras se adaptaram ao novo horário de funcionamento do comércio essencial no centro urbano. As medidas de cuidado em relação ao vírus foram disseminadas pelos decretos, reuniões e, principalmente, por carros de som, radiofonia e cartilhas informativas produzidas pelo ISA em parceria com a FOIRN. Esse material, traduzido para algumas línguas indígenas, reforçava os principais cuidados recomendados pela Organização Mundial de Saúde e apresentava orientações adaptadas à realidade dos rionegrinos. Os cuidados e os procedimentos que, à época, já tomavam as páginas e telas dos veículos de informação, começavam a adentrar a vida e as atenções gabrielenses através dessas reuniões, materiais e ações, cujos conteúdos eram propagados para as comunidades indígenas nas diferentes calhas e regiões que fazem parte do médio e alto rio Negro.

Primeiros casos

Confirmei em 26 de abril, por meio do boletim da SEMSA, um boato que já circulava, então, nos grupos de WhatsApp: os dois primeiros casos de infecção por COVID-19 em São Gabriel da Cachoeira. Os infectados eram um militar não indígena, que estava sendo monitorado em casa, e um professor indígena da etnia Baniwa em estado grave de saúde. Em ambos os casos, nos dias que antecederam a aparição de sintomas e o diagnóstico, não havia histórico de viagens e contato com pessoas suspeitas.

A contaminação na cidade foi, de partida, considerada comunitária, provocando uma profusão de rumores sobre casos confirmados e suspeitos, além da culpabilização de pessoas que estavam participando de eventos comunitários. Diversos boatos foram produzidos a respeito dos moradores da cidade, assim como foram divulgados boletins epidemiológicos falsos. Essas ações desencadearam algumas notas informativas veiculadas pela SEMSA no Instagram, esclarecendo a população sobre a situação epidemiológica da cidade e reforçando que a divulgação de notícias falsas seria penalizada.

Entre o marco inicial de 26 de abril até o fim do mês de maio, a situação epidemiológica da cidade era alarmante. No dia 20 de maio, foi divulgado um informe sobre a dinâmica dos casos de COVID-19 no perímetro urbano do município, que corresponde ao período do dia 26 de abril até o dia 19 de maio. As informações contidas dizem respeito aos 399 casos confirmados e os 15 óbitos notificados naquele momento. Posteriormente, em 31 de maio, a SEMSA apresentou o número de 1.647 casos e 21 óbitos por COVID-19. Esse aumento de 1.248 casos confirmados em um período de doze dias deve-se à realização de testagem em massa, que ocorreu entre os dias 26 e 29 de maio, conforme consta no comunicado feito pela SEMSA no dia 25 de maio.

Após a primeira quinzena de junho, a incidência de casos confirmados e de óbitos, por semana, diminuíram e apresentaram uma certa estabilidade, como mostram os gráficos abaixo. Atualmente, conforme boletim do dia 5 de janeiro de 2021 há 5.052 casos e 59 óbitos confirmados.

 

                                                                                                                               Gráfico 1: Gráfico elaborado pela autora tomando como base os boletins epidemiológicos de São Gabriel da Cachoeira disponibilizados no Instagram da SEMSA, 2020

 

                                                                                                                                 Gráfico 2: Gráfico elaborado pela autora tomando como base os boletins epidemiológicos de São Gabriel da Cachoeira disponibilizados no Instagram da SEMSA, 2020

 

Campanha Rio Negro, Nós Cuidamos!

Antes de surgirem os primeiros casos de COVID-19 no município, Elizângela da Silva, liderança Baré, mãe de três filhos e, na época, coordenadora do Departamento de Mulheres (DMIRN) da FOIRN, me enviou uma mensagem de texto. Disse que, após conhecer a campanha Emanas, realizada por mulheres de Roraima, tinha o desejo de criar uma campanha que pudesse arrecadar e distribuir alimentos, produtos de higiene, álcool em gel e máscaras para a população do Rio Negro. Ela relatou que muitas mulheres estavam precisando do tipo de ação que a campanha propunha pois, devido às restrições de circulação de pessoas, as associações de mulheres filiadas à FOIRN não poderiam levar seus produtos até a cidade, o que interferia, entre outras coisas, na geração de renda dessas mulheres. Elizângela e Janete Alves – a última do povo Desana, também mãe de três filhos, que trabalhava junto com Elizângela na coordenadoria do DMIRN – relataram que a ideia inicial era ajudar as mulheres que não poderiam circular com os seus artesanatos. Ajudar as mulheres implica, como elas explicaram, mobilizar ajudas e cuidados para todo o coletivo: as mulheres e suas redes. As coordenadoras do DMIRN, notaram que, além da ameaça do vírus, era importante estar atenta aos efeitos colaterais que as medidas de controle de transmissão do vírus já estavam causando na vida dos rionegrinos.

Como explicou Elizângela,“essa pandemia também mostrou que as instituições públicas não estão preparadas para receber esses grandes acontecimentos...”. Desse modo, criaram a campanha Rio Negro, Nós Cuidamos! com a finalidade de contribuir com os parentes. Arrecadar e distribuir produtos de higiene, combustível, ferramentas agrícolas e de pesca iria auxiliar as famílias rionegrinas a não se deslocarem até a cidade em busca destes produtos, correndo o risco de contraírem a doença e a levarem para as comunidades. A campanha também visa atender as necessidades da Rede de Comunicadores Indígenas do Rio Negro, a Rede Wayuri, sistema regional de comunicação e informação radiofônica e digital da FOIRN, que teve papel fundamental para divulgações de informações sobre o novo coronavírus nas comunidades indígenas.

A campanha teve seu lançamento no dia 29 de abril (três dias após os primeiros casos confirmados no município), e representantes da FOIRN e do DSEI realizaram três viagens entre os dias 27 de maio e 26 de junho de 2020 em que distribuíram aproximadamente 3.379 cestas básicas para mais de 2.500 famílias. Cartilhas, banners e álcool em gel também foram distribuídos para os agentes comunitários de saúde nas comunidades e sítios (FOIRN, 2020). Elizângela e Janete compartilharam por WhatsApp diversas fotos de suas filhas produzindo máscaras, ressaltando que, por meio da campanha, outras costureiras foram convidadas para a produção de mais de 8 mil máscaras também distribuídas na região.

Em paralelo à campanha Rio Negro, Nós Cuidamos!, as mulheres indígenas compartilharam, por mensagens de texto no WhatsApp, receitas de chás e benzimentos que geralmente vinham acompanhadas de relatos pessoais ou de pessoas próximas que conseguiram se curar da COVID-19. Inclusive, a equipe que realizava as viagens para a distribuição das cestas básicas observou: “nas comunidades ribeirinhas, pelas próprias manifestações das lideranças locais, que a COVID-19 já passou na maioria delas. Segundo os moradores, eles se curaram com remédios tradicionais da floresta, benzimento de pajés e cumuã” (FOIRN, 2020:8). Uma senhora do povo Tukano, após fazer o isolamento social em um sítio, retornou à cidade com diversos remédios tradicionais e panelões de chás que foram distribuídos por seu marido, do povo Tariano, quando realizava benzimentos às pessoas que estavam infectadas. As mulheres pegaram microfones e andaram em carro de som pela cidade para alertarem a população sobre a importância de ficarem em casa, utilizarem máscaras e lavarem as mãos.

Em uma região em que a circulação de pessoas, artesanatos e dinheiro são centrais, as mulheres indígenas se mobilizaram para fazer circular, dessa vez, informações, máscaras, álcool em gel, chás e alimentos. Tudo isso na expectativa de restringir a circulação do vírus e de garantir o cuidado coletivo. Responsáveis por cuidar da família, das plantas medicinais, da roça e das crianças – como relata Elizângela no vídeo de lançamento da campanha – as mulheres do Rio Negro se engajaram em relações de partilha e circulação do cuidado, contribuindo para evitar a contaminação por COVID-19 em São Gabriel da Cachoeira. Essas mulheres, com suas ações, intervieram no debate sanitário do município e criaram estratégias para lidar de forma diferente com a pandemia.

 

O documento citado no texto é o seguinte relatório: FOIRN. Relatórios de viagem do dia 27 de maio a 26 de junho de 2020. São Gabriel da Cachoeira, 2020.

Como citar: Morais, Dulce Meire Mendes. 2021. Notas sobre a chegada da pandemia de COVID-19 em São Gabriel da Cachoeira (AM). Plataforma de Antropologia e Respostas Indígenas à COVID-19, n. 1, fev. 2021. Disponível em www.pari-c.org.